sábado, 30 de setembro de 2017

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Acordou como gostava – seu cabelo parecia ter visitado um vilarejo em sonho. Nesse sonho algumas folhas da macieira vieram nos fios. Queria ter cabelos grisalhos, mas sabia que quando desejava algo quase como obsessão não acontecia.

Levantou de golpe tinha consciência que os cinco minutos se transformariam em mais meia hora de sono. Seu reflexo no espelho abriu a caixinha da memória, vontade de mandar uma mensagem:

-Eu acordei tão linda hoje, você tinha que ver!

Sabia que não deveria, ou melhor, poderia, mas a resposta seria superficial, assim como o trato de seus sentimentos.

A narrativa criada tinha muitos personagens, todos imaginários.

O detalhe a encantava. Seu desejo de preencher o vazio com detalhes era frequente.
Seus olhos em dias iluminados eram mais claros e em dias com menos luz, escuros. Um clichê bonito. Uma mescla de olhos cor de mel com loba solitária.

Uma parte do seu rosto era assimétrica e mais envelhecida. Já colecionava tantas decepções que sua aparente insatisfação com a humanidade não disfarçava nem com base.

Poemas, escritos, cigarros terminados, garrafas vazias, rosas multicores, livros, xícaras, copos, talheres gastos – cenas cotidianas.

Estrada petrificada. Sua voz já não saia tão bem, tanta fumaça corrompeu suas cordas vocais. Tudo bem afinal, todos estão quase no fim.

Insatisfação com a humanidade, constante pensamento que invadia seus dias.

A narrativa que criou  a perturbava porque parte dela talvez fosse verdade, mas preferia não confiar. Era mar tempestuoso, mas firme quase contraditório quanto a lentidão veloz dos seus sentimentos.

Sufocante.

Era isso que sentia em quase todas as situações. Sufoco. Obrigação social e angústia.

Suas justificativas e desculpas eram nulas, ouvia tudo com atenção e quando era o momento de responder, apenas concordava, pois acreditava estar à espreita da loucura.

Músicas românticas, sofrência e fumaça são suas companheiras inseparáveis.

Observava atentamente o comportamento masculino, a relação de poder e até quando desafiava o brio de alguns machos. Se divertia, mas também doía.

Estava cansada e doente. Não sabia ao certo o que tinha, mas sabia que era algo.

Mesmo que em outras vias disseram sua saúde ser forte. Sabia que em algum momento descobriria algo fatal. Era como consolo. Só queria morrer em um dia breve, azul e na América do Sul.

Estava cansada de esperar que alguém reparasse em seus detalhes, naquele vestido de flores que faltava alguns galhos, no seu sapato descolando a sola, no cabelo penteado para o lado direito (era sempre o esquerdo), a cor nova dos seus aros (gostava de carregar muitas argolas em sua face – desenhos circulares). Sua comida preferida, seu vinho Carmènére, seu desejo por andar nas ruas de Buenos Aires escutando a boemia dos ventos. O desejo de abraçar o mundo inteiro.

Era companhia que ela queria.
Companhia apenas.

De tanto desaguar.
Quis virar rio e ir pro mar.  



terça-feira, 26 de setembro de 2017

hábito

talvez os devaneios das situações singulares pertençam ao cosmos.
há momentos que não tem explicação
ou simplesmente o controle está fora do alcance
de transformar o peso em leveza
da tristeza em alegria
há sempre um caminho do bem a seguir
com palavras árduas
dedicação e disciplina
se pode alcançar o topo da colina
devaneios
anseios
e desejos
são meras distrações oníricas
proibidas
devido ao tempo
exato momento
em que não se pode propor a firmeza dos ventos


domingo, 24 de setembro de 2017

mundo imaginário

Criei um mundo a partir de narrativas
Vividas por mim, apenas
Ofertando meu barco a mares incertos
Deserto de afeto
Reciprocidade nula
Criei um mundo a partir de cheiros
Sensações, vontades e reciprocidade
nesse mundo, as pessoas são sinceras
prezam pelo correr tranquilo das águas
naturalmente os anseios são encontrados
divididos e estruturados
num laço de respeito
e sensibilidade
criei um mundo a partir do toque de sentir sua pele
esse mundo não existe aparentemente

apenas ventos que sopram o imaginário  

terça-feira, 19 de setembro de 2017

furaconeando

é dia, céu ensolarado
desejo transpassado
aurora
anseio pelo pôr do sol
vermelho
desejo de abraçar o mundo inteiro
não! é dia meio nublado
café frio
amor meia boca
sexo não gozado
é dia, céu quase estrelado na noite do imaginário
é sol que esquenta as labaredas de concreto
tudo porque lhe foi negado o afeto.

sábado, 2 de setembro de 2017

dourado hábito inesperado

Quatro garrafas estupidamente geladas, se pego em seu corpo, explodem.
Seria sensibilidade ou apenas física?
Amendoim com casquinha.
Cumbucas vermelhas.
Copos americanos.
Um cinzeiro.
Alguns cigarros apagados.
Cheiro de podre – seria interior ou apenas impressão?
Jab direto, jab cruzado.
Pensamento a milhão.
Decisão.
Lua em capricórnio.
Astrologia mercantilizada ou sentido para o apego?
Agarro meu copo.
Acendo outro cigarro.
Mudamos a linguagem – exercício continuo de deslocar-se.
Não é possível fisicamente, o imaginário é acionado.
Seus olhos sensíveis, seu corpo retrata a ansiedade.
Medo.
De não ser, de não estar. De ser rejeitado.
Espera ser notado.
Equívoco.
Ele quer ver o mar, mas precisa ir até lá.
Ele vai
Navegar.
Ou voar?
Copo americano meio rachado.
Nadir é a marca.
Compartilhamos nossos anseios, desejos.
Tudo sem combinar.
Daqueles dias espontâneos
Você sente
Que afinal
O controle só é parte
da condição de estar sempre frustrada
Apática
De interpretar o outro
Sem sequer
consultar.

(e eu continuo com saudade no dilema de desaparecer, afinal, pra quem estou mentindo?)

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Ela esperava que um dia as flores amarelas fossem ofertadas ao seu anseio mais íntimo de sentir-se desejada, não sabia de onde vinha a necessidade de ganhar flores e negava todas suas expressões românticas.

Seus dias flutuavam como o navio no mar.

Ela nunca se apaixonou de verdade a não ser pela garrafa de vinho que a acompanhava durante décadas.
Sua frustração em relação aos seres humanos vinha desde da época em que seus pais disseram que ela não passava de uma atriz fracassada ensaiando sem estreia.

Na verdade, esse espetáculo é a própria vida que não permite ensaios, não há como saber se a decisão tomada pelo sim ou pelo não será acertada. A realidade não permite muitos ensaios.

Era domingo e o sino da Igreja próxima a sua casa já anunciava 9h da manhã.

Usualmente saía com sua bicicleta a fim de sentir o vento tocando seu rosto, logo fazia a feira e retornava à sua casa acomodar todas as compras classificadas em cores e sabores.

Seus olhos atentos a queda, o medo da vertigem desde que conhecera essa palavra.

Seu cabelo estrategicamente despenteado, sinais de expressão duvidosa e dentes um pouco amarelados esboçavam o leve charme sustentado pelo seu olhar de altivez. Há anos escutava:

-Você não sente tanto, é curta e grossa. Meia antipática.

O cansaço somado a angústia capitalista não formavam sílabas para debater a afirmação das pessoas que cruzavam seu caminho, não fazia questão de ser transpassada.

Estava um pouco cansada esse dia, apática também.

Resolveu ir à feira – o cheiro da feira remetia a memórias afetivas quase apagadas.

Morangos, abóbora cabotian, ervilha torta, uma garrafa de cachaça artesanal, mel e algumas batatas.

Os feirantes já conheciam suas compras.

Quando voltava, estrategicamente acomodava os produtos em seus devidos lugares e religiosamente tomava uma dose de cachaça servida em seu mini copo americano.
Seu ritual preferido era quando a comida começava a ferver: seus pratos prediletos eram densos e pastosos. Gostava muito de condimentar os alimentos com páprica.

Enquanto cozinhava recordou das frases clichês daquelas pessoas que a conheciam superficialmente e pensou:

-Não sinto tanto as situações porque todo meu amor é ofertado nas panelas.
Estava separada há meses, sua memória punitiva dirigia suas recordações a destruição.